“Eu amava jogar com meu Kichute”, diz Casagrande sobre o tênis que era chuteira
Lançado no mês da conquista do tricampeonato mundial de futebol, virou titular absoluto nos campinhos das quebradas
O Kichute chegou ao mercado em 1970, no embalo do tricampeonato mundial. São 55 anos da chuteira barata, que marcou gerações nos campinhos, quadras e ruas das quebradas. Casagrande, Zico e ex-jogadores de várzea relembram com afeto do Kichute, que faz parte da memória afetiva do futebol brasileiro.
Lançado em junho de 1970 no embalo do tricampeonato mundial de futebol conquistado pela seleção brasileira, o Kichute foi a chuteira possível para o moleque pobre. Resistente, com cravos, mais barato que a chuteira tradicional, servia para jogar bola, ir à escola e passear. Foi titular absoluto por duas décadas nos pés de quem brilhou pelos campinhos, quadras e ruas das quebradas.
“Eu me lembro muito bem quando lançaram o Kichute. Foi uma febre para a garotada da época. Meu pai me comprou um e a gente se sentia um jogador de futebol profissional. Era demais mesmo. Eu amava jogar bola com meu Kichute”, lembra Casagrande, cria da Penha, zona leste de São Paulo.
O Kichute chegou no governo Médici, quando o tênis mais barato era o Conga. Mas o Kichute – um pouco mais caro, mais confortável e robusto – foi um sucesso de vendas. Atravessou a Ditadura e extrapolou as periferias. O cadarço comprido, amarrado na canela ou enrolado na sola, faz parte da memória afetiva do futebol brasileiro.
Zico, craque do Flamengo, foi garoto-propaganda do Kichute em 1982. “Eu estava numa fase boa, pediram para eu fazer e deu certo, venderam tudo que tinha no estoque. Eu fiz a propaganda da última leva”, lembra o camisa 10, que jogou com Kichute nas peladas de Quintino (leia aqui entrevista completa com Zico sobre o Kichute).
Kichute, titular absoluto da várzea por duas décadas
Em meados dos anos 1970, no campo de terra do Flamengo Vila Maria, zona oeste de São Paulo, “um monte de gente gostava de jogar com Kichute, era macio, tinha os cravos de borracha”. A lembrança é de Osvaldo Augusto, o Vadão, presidente do time de 82 anos. “Eu peguei bem essa época, usei muito Kichute, era o tênis da moda, até mulher usava.”
O diretor do Flamengo Vila Maria, Gilson da Silva, 61 anos, era uma criança no Recôncavo Baiano quando ganhou seu primeiro Kichute. Ele lembra das gambiarras para mantê-lo brilhando. “Novo, era bonito. Mas depois do desgaste nas travas, arriava, ficava parecendo uma boca de sapo. A gente usava graxa Nugget para ficar mais preto, deixava no sol, dava lustro na parte de borracha”.
Para ter um Kichute e jogar no Palmeirinha da favela de Paraisópolis, fundado em 1973, o atual presidente cuidou de carro e catou ferro-velho. Francisco Luiz da Silva, 65 anos, lembra do Kichute como trampolim para a chuteira. “Quem podia comprar um Kichute era o bambambã na várzea. Joguei muitos anos com ele, até chegar numa chuteira verdadeira.”
O Kichute tinha múltiplos usos e levantava múltiplas questões. “Às vezes, dava dó jogar bola, era um calçado que você tinha até para sair. Minha mãe ficava puta quando a gente jogava bola no barro, na lama, no terrão. Mas eu usava só quando o Kichute estava velhinho”, lembra Carlos Santana, o Careca, do Palmeirinha de Paraisópolis. “Acredito que usei Kichute na década de oitenta inteira.”
Uma das vantagens do Kichute era ser preto
Outro trunfo do Kichute era a cor. “Minha mãe dizia: filho, você é muito relaxado, vive para cima e para baixo, tem que ser o Kichute preto, que não vai sujar muito”, lembra Janilton Oliveira, que morava na Vila Indiana, divisa de Embu das Artes, na Grande São Paulo.
“Eu comprava na feira. Metia o Kichute, metia minha bermudona, uma meia, amarrava na canela.” China, como é conhecido, foi jogador. Em sua memória estão as marcas pretas da borracha dos cravos do Kichute no chão da quadra da escola. “Usei muito Kichute, filho: muito, muito, muito, muito. Muito.”
Apesar de acessível a periféricos e mais barato do que uma chuteira, nem todo pobre podia ter seu Kichute. É o caso de Nego Marcos, do Jardim Leme, em Taboão da Serra, Grande São Paulo. “Para a minha realidade, estava meio longe. Mas eu dei sorte, chegou uma época que o Kichute passou a fazer parte do uniforme”, relata um dos refundadores da Associação Atlética Ponte Preta Leme.
Com mestrado em jornalismo esportivo, Marcelo Cardoso destaca a importância simbólica do Kichute após a conquista do tricampeonato mundial de futebol, em 1970. Representaria a “introdução, no imaginário das crianças e jovens, de um sentimento de pertencimento, de uma população que via no futebol a sua mais alta conquista”.
Professor, jornalista e pesquisador, Cardoso é um teórico com vivência no tema. Na infância, em Santos, litoral paulista, também usou Kichute.