Igreja já teve uma papisa? Conheça lenda de Joana e saiba como mulheres foram banidas do clero
Com a proximidade do conclave em que será escolhido o novo papa após a morte de Francisco, ressurge a antiga história da papisa Joana, uma mulher que teria se disfarçado de homem para estudar, subir na hierarquia da Igreja e ser eleita ao trono de São Pedro, no Vaticano.
Com a proximidade do conclave em que será escolhido o novo papa após a morte de Francisco, ressurge a antiga história da papisa Joana, uma mulher que teria se disfarçado de homem para estudar, subir na hierarquia da Igreja e ser eleita ao trono de São Pedro, no Vaticano.
Embora isso não seja possível dentro da estrutura da Igreja Católica — que proíbe a ordenação feminina —, a pergunta ganha relevância com a lembrança da figura lendária de Joana. A história circulou amplamente na Idade Média e foi registrada historicamente por diversas fontes eclesiásticas.
A primeira referência escrita conhecida da papisa Joana aparece em uma crônica do dominicano Jean de Mailly, de Metz, por volta de 1250. Ele relata a história de uma mulher que, disfarçada de homem, teria se tornado papa. No entanto, é na crônica de Martinho de Opava, também conhecido como Martinho o Polonês, escrita cerca de 1277, que a lenda toma forma mais detalhada e duradoura.
Martinho situa o pontificado de Joana por volta do ano 850, entre Leão IV e Bento III, e a descreve como João, o Inglês — supostamente originária do País de Gales ou da Alemanha, segundo versões posteriores.
De acordo com a narrativa, Joana foi levada por seu amante a Atenas, onde adquiriu uma educação vasta. Mais tarde, chegou a Roma, onde se destacou como professora e teóloga. Tanto teria progredido que, por escolha de todos, foi eleita papa, com o nome de João. Sua erudição sofisticada a teria levado a ser escolhida, ainda disfarçada de homem.
Mas durante uma procissão, Joana teria entrado em trabalho de parto e dado à luz em público, revelando assim seu sexo biológico. Ela e o bebê teriam morrido em seguida. Alguns relatos dizem que o povo, indignado, a teria apedrejado. Outros afirmam que ela teria sido afastada do cargo e morrido enclausurada.
A lenda teve tanto impacto que, durante séculos, foi amplamente aceita como verídica. O mestre de cerimônias papal Johannes Burchard, no século XV, relata que, por precaução, cada novo papa na época era obrigado a sentar-se em uma cadeira com um orifício no assento (a chamada sedia stercoraria), enquanto um diácono confirmava: "Testiculos habet et bene pendentes" ("Tem testículos e estão bem pendurados"). Embora essa prática já existisse antes da lenda e tenha outros significados litúrgicos, a história de Joana reforçou sua simbologia.
Da neutralidade à misoginia
Nos três relatos mais antigos — Jean de Mailly, Martinho o Polonês e Estêvão de Bourbon —, não há condenações morais ao comportamento sexual da papisa. A crítica é institucional: uma mulher não poderia ocupar o cargo de papa.
A virada moralizante ocorre com Giovanni Boccaccio, no século XIV, em sua obra De mulieribus claris (Sobre as mulheres ilustres), publicada em 1362. Ele é o primeiro escritor leigo a criticar abertamente a sexualidade de Joana, utilizando termos depreciativos e introduzindo elementos claramente misóginos.
A partir daí, a figura da papisa passa a ser vista como símbolo de "traição, luxúria e pecado".
Críticas protestantes e desmentido histórico
Durante a Reforma, teólogos protestantes usaram a história da papisa como argumento contra a autoridade do papado. No entanto, o protestante francês David Blondel, no século XVII, conduziu uma análise crítica dos documentos medievais e concluiu que a papisa Joana nunca existiu. Ele demonstrou contradições cronológicas e geográficas nos relatos, além da ausência total de documentos contemporâneos que mencionem tal papa.
Historiadores modernos confirmam que se trata de uma construção lendária, com forte valor simbólico, mas sem base factual. Agostino Paravicini Bagliani, em seu estudo de 2024, identificou 109 textos anteriores a 1500, dos quais 106 derivam diretamente de apenas três, mostrando a repetição e amplificação circunstancial do mito ao longo do tempo.
O uso político da lenda
A figura da papisa Joana foi usada pelos próprios clérigos medievais como exemplo a não ser seguido: "Já houve uma, não pode haver duas", resumiu Bagliani ao site de Franceinfo. A história da suposta papisa servia como alerta e como justificativa para a exclusão sistemática das mulheres de qualquer função ordenada na Igreja.
Os dominicanos e franciscanos do século XIII, ao notarem que havia registros de diaconisas e presbíteras nos primeiros séculos do cristianismo, buscaram reinterpretar essas fontes, alegando que tais mulheres não exerciam funções sacramentais, mas apenas tarefas auxiliares.
Joana se tornou um símbolo do "perigo" que as mulheres representariam caso ocupassem cargos eclesiásticos.
Reflexão sobre as barreiras de gênero em lugares de poder
A lenda de Joana pode ter sido criada para limitar e justificar a exclusão das mulheres, mas, ao mesmo tempo, ela nos oferece uma reflexão poderosa sobre as barreiras de gênero na história da Igreja. A história de Joana é a de uma mulher que, embora se disfarçasse de homem, ainda assim representava algo que os homens no poder temiam: a inteligência feminina, a capacidade de liderança e a possibilidade de transformação da Igreja por meio da inclusão.
Estudiosos apontam que, ao olhar para a lenda da papisa Joana, não se deve apenas rejeitar a mentira histórica, mas também entender que, por trás dessa história, há um sistema patriarcal que tem sido alimentado por séculos para garantir que as mulheres continuem subordinadas e excluídas de posições de poder dentro da Igreja.
"Nada mudou"
Mais de mil anos após o suposto pontificado da papisa Joana, a Igreja Católica continua a proibir a ordenação de mulheres. Para o historiador Bagliani, a permanência dessa doutrina mostra o quanto os mecanismos de exclusão criados na Idade Média continuam ativos: "Se não pode haver mulher no topo, também não pode haver na base", resume.
A lenda, embora desmontada historicamente, ainda opera como narrativa simbólica na sustentação de uma estrutura clerical exclusivamente masculina e patriarcal.
Francisco e o apoio às mulheres na Igreja
O papa Francisco vem sendo reconhecido por sua abordagem mais inclusiva e aberta em relação às mulheres dentro da Igreja Católica, embora ainda existam limitações significativas. Uma de suas iniciativas mais notáveis foi nomear mulheres para cargos importantes na administração da Igreja. Embora ele não tenha permitido a ordenação de mulheres como sacerdotes, o papa nomeou várias delas para papéis de liderança em entidades governamentais da Igreja que tradicionalmente eram dominadas por homens.
Em 2013, Francisco nomeou a primeira mulher para um cargo de conselheira no Banco do Vaticano (IOR), um sinal claro de sua vontade de abrir mais espaços de influência para as mulheres. Em 2016, o Papa nomeou a primeira mulher para um cargo de liderança como parte do Comitê para o Conselho de Economia e criou uma comissão para estudar a possibilidade de abrir o diaconado permanente às mulheres.
Embora, até hoje, não tenha ocorrido nenhuma mudança formal, a comissão foi vista como um passo importante para discutir a possibilidade das mulheres desempenharem papéis ministeriais mais amplos dentro da Igreja.
Francisco fez ainda de Barbara Jatta a primeira mulher diretora dos Museus do Vaticano em 2016. Em 2021, ele nomeou a irmã Nathalie Becquart como co-secretária do Sínodo dos Bispos, que prepara as principais cúpulas dos bispos católicos do mundo a cada poucos anos. Em 2022, Francisco nomeou a irmã Alessandra Smerilli como a segunda funcionária do escritório de desenvolvimento do Vaticano, que lida com questões de paz e justiça.
No Sínodo sobre a Amazônia (2019), Francisco destacou a importância de as mulheres terem um papel mais visível e atuante nas decisões da Igreja sobre o futuro da região.
(Com agências)