Brecha no Orçamento permite 'desvio' de R$ 19,9 bilhões em emendas para 4 mil cidades
Criadas para financiar projetos como hospitais e rodovias nos Estados, emendas de bancada vêm sendo usadas como moeda eleitoral pulverizada em prefeituras; a prática se consolidou no Congresso e levou o STF a reagir; Câmara dos Deputados diz que responsabilidade pelo tema cabe aos líderes das bancadas estaduais
Desde 2017, quando a modalidade foi criada, R$ 19,9 bilhões em emendas de bancada estadual foram executados fora de sua finalidade original: financiar projetos estruturantes de interesse dos Estados, como a construção de hospitais regionais e rodovias. A distorção ocorre por uma brecha aberta durante o início da tramitação do Orçamento, quando parlamentares registram as emendas de forma genérica, como se os recursos fossem destinados a governos estaduais. Após a aprovação, no entanto, o dinheiro público é redirecionado diretamente a prefeituras, onde a execução é mais rápida e o retorno político, maior.
O resultado é a pulverização entre mais de 4 mil municípios, desvirtuando sua função prevista. A prática é proibida, salvo exceções, mas se consolidou no Congresso como mecanismo recorrente e levou o Supremo Tribunal Federal a adotar novas regras de controle. Procurada, a Câmara dos Deputados informou que a responsabilidade pelo tema cabe aos líderes das bancadas estaduais.
A manobra faz com que essas emendas, originalmente criadas para financiar projetos de impacto regional, acabem seguindo a mesma lógica das emendas individuais: distribuição pulverizada para Prefeituras com foco em redutos eleitorais e alianças locais.
"Elas foram criadas justamente para financiar obras coletivas, que não são possíveis executar por meio das emendas individuais. Transformá-las em repasses pulverizados é desvirtuar completamente esse propósito", afirma o pesquisador do IDP Humberto Nunes Alencar, que compilou os dados.
A bancada do Rio Grande do Norte, por exemplo, que tem direito à cota igualitária de cerca de R$ 300 milhões em emendas desse tipo, destinou R$ 315 milhões em 2024 a 157 dos 167 municípios do Estado, com repasses médios de cerca de R$ 2 milhões. O padrão se repete em quase todas as unidades da Federação: desde 2017, 4.198 municípios receberam recursos pulverizados por meio desse tipo de manobra.
Para 2025, a previsão é que essa modalidade movimente R$ 14,2 bilhões, montante cujo pagamento se tornou obrigatório pelo governo federal desde 2019. Como mostrou o Estadão, as emendas de bancada vêm sendo distribuídas entre os Estados sem critérios técnicos, como população ou indicadores econômicos.
Técnicos do Orçamento ouvidos pela reportagem explicam que a distorção tem origem já na fase de aprovação do Orçamento no Congresso. É nesse momento que os parlamentares indicam os destinos das emendas do ano seguinte — e também no qual começa a manobra: deputados e senadores registram as emendas de bancada de forma genérica, como se os recursos fossem destinados aos governos estaduais.
As propostas seguem para a Comissão Mista de Orçamento, composta por parlamentares, que aplica critérios legais para evitar a pulverização. Um deles proíbe, como regra geral, que prefeituras sejam indicadas diretamente como destino dos repasses. Há exceções, mas elas precisam ser justificadas e aprovadas por um comitê técnico durante a tramitação.
Essa limitação, no entanto, é burlada por meio de uma manobra recorrente. Por lei, toda emenda de bancada fica vinculada a um ministério, que executa os recursos nos Estados. Após a aprovação do Orçamento, essa vinculação permite ao coordenador da bancada pedir à pasta que divida uma única emenda de bancada em dezenas de repasses para prefeituras.
Na prática, o ministério autoriza a troca, e o que foi aprovado como repasse estadual vira uma série de emendas individuais pulverizadas, subordinando a aplicação do dinheiro a interesses locais e eleitorais.
Em 2024, R$ 148 milhões foram aprovados para transferências diretas a prefeituras, em caráter de exceção. No fim do ano, esse valor saltou para mais de R$ 2 bilhões, distribuídos a 2.498 municípios — um crescimento de 13,5 vezes, viabilizado por essa brecha. Desde 2017, a prática já movimentou R$ 19,9 bilhões em emendas de bancada com destino a prefeituras. "A exceção virou regra", resume Humberto Nunes Alencar.
Marina Atoji, da Transparência Brasil, destaca que a brecha revela uma falha estrutural também por parte do governo federal. "Os ministérios não podem continuar tão passivos diante dessas manobras. Deveriam levar esse mecanismo à Justiça, mesmo que isso gere atritos com o Congresso e represente um custo político para o governo. É por isso que não o fazem", alerta.
Os parlamentares, por sua vez, têm interesse em transformar as emendas de bancada em algo cada vez mais parecido com as emendas individuais, com o objetivo de colher dividendos políticos pelas obras e recursos entregues, explica o cientista político Lucio Rennó, decano do Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).
A lógica, diz, é permitir que cada deputado ou senador se apresente como responsável direto pelo repasse. "Assim fica mais fácil fazer acordos com prefeitos, inaugurar obras. O retorno político é muito maior quando o crédito é individualizado", afirma.
A prática já vem preocupando técnicos do Congresso. Em estudo publicado em fevereiro, a Consultoria de Orçamento da Câmara reforçou o diagnóstico ao apontar que, nos últimos anos, mais da metade dos recursos de emendas de bancada deixou de financiar projetos estruturantes. O restante foi usado em despesas de custeio, como manutenção de ruas e serviços urbanos, que costumam garantir retorno político mais imediato aos parlamentares.
O parecer foi solicitado pela deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que criticou a manobra: "Viraram um monte de obrinhas espalhadas, só para dar visibilidade ao deputado. Era para ser coletivo, mas virou moeda de troca política", afirma.
O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), cujo partido acionou o STF contra práticas ligadas às emendas, diz que a brecha representa mais uma etapa do "apodrecimento do planejamento público e do orçamento". "É preciso estabelecer um valor mínimo para esse tipo de emenda e impedir a troca de modalidade para município", propõe.
Supremo endurece regras após avanço da manobra
Para conter o desvio de finalidade, o ministro Flávio Dino, relator de ações sobre emendas parlamentares, determinou no fim de 2024 que os repasses fossem, de fato, destinados a obras estruturantes nos Estados, como exige a legislação. A medida levou o Congresso a aprovar, no mesmo período, uma lei com diretrizes mais rígidas.
Em abril de 2025, Dino voltou a agir. O ministro determinou que o Congresso identifique os deputados e senadores responsáveis pelas indicações, e não apenas o coordenador da bancada — uma resposta à resolução aprovada pelos parlamentares em março, que abria brecha para manter a autoria das emendas coletivas oculta.
O ministro também cobrou explicações sobre o Cadastro Integrado de Projetos de Investimento, plataforma criada para monitorar a execução das obras e ajudar na identificação de repasses irregulares.
Para Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, Dino acerta ao reagir. "Esse modus operandi é muito prejudicial. As emendas de bancada não foram criadas para alimentar relações políticas individualizadas", afirma.
O pesquisador da PUC-Rio e responsável pela plataforma Central das Emendas, Bruno Bondarovsky, concorda: "O desafio não está apenas em acabar com esse mecanismo, mas em reconstruir um sistema que equilibre justiça federativa e responsabilidade fiscal, sem abrir espaço para atalhos políticos disfarçados de cooperação federativa."
Apesar da decisão do Supremo para conter a distorção, ainda não é possível saber se ela vem sendo efetivamente cumprida. Com o atraso na aprovação do Orçamento deste ano, a liberação das emendas começou apenas em maio, e os efeitos práticos das novas regras só devem ser sentidos a partir do segundo semestre.
Para Marina Atoji, o embate entre os Poderes sobre o tema está longe de acabar, sobretudo após um ato normativo, editado em 2024, que na prática oficializa a manobra que o STF tenta barrar. "Vamos ver como será daqui para frente", diz.
