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Após 8 meses no Ártico e quase morte, Tamara Klink volta à realidade e vê ainda mais perigos na cidade
Velejadora voltou de uma viagem de extremos certa de sua responsabilidade com o clima e espantada com o que reencontrou
O que você fez até os seus 27 anos? Tamara Klink torna a resposta dessa pergunta complicada para pessoas comuns que costumeiramente se formaram na faculdade e, com sorte, se estabeleceram em um emprego. Com essa idade, além de ter obtido o diploma universitário, ela já tinha atravessado o Atlântico velejando duas vezes e sido a primeira mulher do mundo a navegar sozinha pelo Ártico.
Uma dessas aventuras é narrada em “Nós, o Atlântico em Solitário”, livro de 2023. A frase que abre o livro é quase uma confissão para quem atravessa oceanos sozinha: “Sempre será mais fácil desistir antes da partida”, escreve. Esse é o quarto livro sobre suas experiências com o mar e o quinto está a caminho. O conjunto da obra de feitos históricos, narrativas publicadas e mais de 300 palestras ministradas comprovam que ela não cede à tentação da desistência com muita facilidade, não.
Tamara traz o mar no sobrenome. Mas apesar de ser filha de Amyr Klink, um dos maiores e mais famosos navegadores do Brasil, garante que aprendeu tudo por conta própria. Como passageira em família, observou tudo o que podia. Entretanto, afirma que aprender, de verdade, foi na prática. “Meu pai não me explicou como dar nós, saber de onde vem o vento ou a fazer uma manobra. Mas eu tinha noção de que existe uma estrada que leva aos lugares e que existem placas nessa estrada”, ela conta sobre as rotas marítimas.
Suas primeiras aulas de remo aconteceram na USP, onde estudou arquitetura e entendeu que não deveria ter um olhar individualista para os desafios do mundo. “Foi um processo de amadurecimento, talvez como indivíduo, de deixar de ser filha dos meus pais, de ser uma estudante e passar a ser um sujeito de um grupo todo. Acho que é um processo de criar, de desenvolver autonomia que veio na faculdade e que foi muito importante para ser navegadora mais tarde”, conta.
Foi também no campus que fez as primeiras aulas de francês, no horário do almoço, e dali surgiu o impulso de se especializar na École Nationale Supérieure d’Architecture, da cidade francesa de Nantes. “Quando aprendi a remar, já começava a me projetar como navegadora. Mais tarde, ficava imaginando que um dia gostaria de fazer uma navegação mais longa, mas tudo que eu tinha disponível naquela ocasião eram os barcos a remo e não a vela”, diz.
Já na Europa, aprimorou um pouco a rota via Facebook: nas redes sociais, ela convidava desconhecidos para velejar entre os portos franceses nos fins de semana com o Sardinha 1, barco que comprou pelo preço de uma bicicleta na Noruega, com a ajuda de dinheiro emprestado de um amigo que morava lá. Era um jeito de desenvolver o ofício, que se desdobrou em outros vários, de velejadora a escritora e palestrante poliglota.
Quem vê os feitos, porém, não imagina as dificuldades. “Eu aprendi francês, só que quando cheguei na França, falava pouco. Entendia as palavras, mas não necessariamente entendia frases inteiras. No começo foi bem puxado, porque não conseguia acompanhar muito bem as aulas. Às vezes eu era vista como limitada intelectualmente, porque eu era limitada verbalmente, linguisticamente”, conta. O segredo para evitar a desistência que ela cita no início de seu livro foi um diário.
Existia esse preconceito de que, como eu era formada na faculdade latina, talvez a minha formação fosse de pior qualidade do que a dos estudantes de lá. E de vez em quando não me sentia muito confortável. Se eu não desisti, foi porque eu tinha um diário
Prática da infância que salva a adulta
Se Amyr Klink não ensinou a dar nós, a mãe, Marina Klink, deixou um legado prático. Ela obrigava Tamara a escrever as coisas que sentia e fazia em cadernos desde a infância. O exercício virou o talento de narrar jornadas e foi na prática dos diários que Tamara Klink se desenvolveu como escritora. “Era uma necessidade mesmo. Precisei escrever em vários momentos da vida. Primeiro, como obrigação que vinha da minha mãe. Depois, principalmente na França, relatar o que ocorria me colocava num lugar onde eu não tinha direito de ser vítima”, confessa.
Contar essas histórias só para si evoluiu. Na invernagem que realizou no Ártico, Tamara se propôs, com a ajuda de uma equipe, a postar os relatos na sua conta do Instagram, que hoje tem mais de 500 mil seguidores. Sem acesso direto às redes sociais, a navegadora se surpreendeu com o engajamento do público com os seus depoimentos.
A lista de feitos gera interesse naturalmente. Tamara Klink passou oito meses sozinha no mar congelado da Groenlândia. Foi a primeira mulher na história a alcançar a marca, após preparação intensa para a viagem. Para isso, contou com a ajuda de um meteorologista, uma nutricionista e uma assessora, além de apoiadores financeiros para a empreitada.
Para estar no Ártico, Tamara teve que aprender coisas antes impensáveis, como ter porte de arma para afugentar ursos. Por muito pouco não morreu congelada quando caiu no mar. Enfrentou até 40ºC negativos de temperatura e ficou mais de três meses sem energia solar. Ainda assim, considera os perigos de uma cidade grande muito piores do que os que enfrentou ali.
“Olha, depois disso [seu episódio de quase morte no Ártico] já fiquei mais assustada com a ideia de viver numa grande cidade, porque pode parecer assim mais impressionante, ou mais exótico encontrar perigos no mar, mas aqui na cidade a gente encontra o tempo todo. Basta andar em uma calçada que tem um fio elétrico pendurado”, exemplifica.
Sou muito grata às pessoas que me acompanham nas redes sociais. É também graças a elas que eu pude navegar, é graças a elas que isso é uma profissão também. Eu acho que a viagem se torna maior do que ela mesma, e não se encerra quando eu chego no porto. Graças a essas pessoas que os livros têm uma vida própria.
Um novo começo em terra firme
Tamara voltou do Ártico consciente de que lidar com a realidade, especialmente retomar uma rotina diária em terra firme, seria tão ou mais difícil do que os perigos que enfrentou na Groenlândia. E confessa que ficou surpresa com o que encontrou no que ela considera um “novo começo”.
“Enquanto estava lá, pensava que quando eu voltasse após oito meses sem ver as pessoas, encontraria um mundo muito diferente, com muitas evoluções tecnológicas. Achei que as coisas teriam mudado de cara e que eu teria parado no tempo, atrasada. Só que quando eu voltei, a sensação era que as pessoas estavam igualmente insatisfeitas com aquilo que elas tinham, querendo algo novo”, conta.
Por presenciar tão de perto as mudanças climáticas que assolam o planeta, a viagem também mudou completamente o seu entendimento do que é natureza, além de ter trazido à consciência o potencial e a importância do seu movimento político como ativista climática.
Brasileira mais jovem a cruzar o Atlântico solo, primeira latino-americana a atravessar o círculo polar sozinha e a primeira mulher na história a cruzar o Ártico. Ainda assim, Tamara Klink não se vê como pioneira. Muitas vezes, desaconselhada a fazer cada uma dessas expedições marítimas pelo simples fato de ser mulher, ela admite o desgaste causado pelos ecos de uma sociedade machista.
Faz uma lista mental dos discursos protetores que escutou: “não vai, vai ser perigoso”, “não vai, talvez não dê certo”, “não vai, você pode morrer”, “não vai, você vai ser estuprada ou agredida por um outro homem”. E garante que esses aconselhamentos mais a fizeram perder energia do que a ajudaram. “Esses discursos, especialmente ligados ao universo feminino ou aos estereótipos de gênero, fazem a gente perder um tempo e uma energia que os nossos colegas podem usar, por exemplo, para se preparar melhor. Sobrecarrega quando poderia apenas estar descansando para a partida”, revela serenamente. Como navegadora e em tantos outros casos, desistir, como ela diz ainda no primeiro parágrafo de “Nós”, é renunciar à chance de partir.
Todas as pessoas que têm algum contato com dados científicos ou com evidências das mudanças climáticas têm a obrigação de ser um agente transformador e um agente disseminador dessa consciência. É uma obrigação que a gente já tem com a nossa própria espécie.
Dicas de Tamara Klink
Música
• Eu escuto muitas músicas, mas eu vou então te dar uma recomendação de um grupo Groenlandês. Uummannarmiuaqqat são umas moças que fazem parte de um orfanato de uma cidade chamada Uummannaq. A gente não ouve muita música groenlandesa, né? Eu nunca tinha ouvido antes de ir para lá.
Livro
• Estou virando embaixadora desse livro: “Knulp”, do Herman Hesse.
• Meu livro preferido, que deveria ser obrigatório para todos os brasileiros, é o “Grande Sertão: Veredas”, do Guimarães Rosa.
• Tem o “Acrobata”, um livro de poesia da Alice Sant'Anna.
Filme
• Tem um filme islandês que eu gosto muito chamado “Woman at War”.
• Os Sete Samurais.
Podcast
• Eu gosto muito do podcast da Paulina Chamorro, “Vozes do Planeta”.
• Na viagem eu também ouvi um podcast chamado “Vamos falar sobre música” e um chamado “Les Baladeurs”, francês.